segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Desejo

Ambos os corpos eram jovens. Jovens e belos. Ela linda. Morena, olhos de gata siamesa, corpo de estrela do cinema francês, encantadora. Ele, um velho. Sentia-se como se tivesse vivido 100 anos e sofrido toda uma vida. Seu corpo era moço, mas sua alma, idosa. Repleta de arrependimentos e de histórias para contar.
Se encontraram qualquer dia desses meio que por acaso. Quem os visse, acharia um casal digno de fotografia. Suas mentes, porém, não se suportavam. Ela ainda era inquieta, não aguentava esperar o rítmo da vida. Enquanto isso, ele já havia vivido tudo o que existe. Seus corpos, porém, se entendiam. Ao primeiro encontro. Para eles, bastou o desejo. Pronto.

domingo, 29 de agosto de 2010

Luthier

O senhor Olavo trabalha em uma lojinha pequena, na esquina da Carlos de Carvalho com a Santos Dummont, consertando coisas. Objetos que clientes traziam e que, na maior parte das vezes, mesmo não valendo um tostão, faziam questão de que fossem consertadas: relógios antigos, molduras de telas, tapeçarias castigadas por fungos ou traças. Trabalhava como um luthier de bugigangas, mas que apenas reparava objetos criados por outras pessoas. Todas as noites chegava em casa e, sequer cansado de trabalhar, passava horas sozinho pensando no que mais poderia fazer de sua vida. Entre um trago e outro, escrevia o que viesse em sua cabeça e adormecia ébrio a fim de poder sonhar com coisas que já não se lembrava. Desde sempre, amava escrever. Mas não era escritor. Faltava-lhe talento. Não sabia criar. Uma única vez havia escrito um grande poema. Três ou quatro paginas da maravilhosa história de um jovem trovador medieval apaixonado por uma dama da alta corte, aliás, casada. O poema, contudo, não estava acabado. Mas toda a inspiração de Olavo sim. Ele repetia, então, o poema. Todas as noites, para ver se encontrava o final da história. Já havia datilografado centenas de cópias, as quais jaziam pregadas pelas paredes do pequeno apartamento de 3 cômodos e 1 janela. Quando criança sonhara em ser famoso, mas crescera. Agora seu poema está misturado à bugiganga que conserta.

sábado, 28 de agosto de 2010

Espelho

Anna Clara olhou-se no espelho e não se reconheceu. Não é que estivesse diferente, ou doente, ou mais velha. Simplesmente não parecia ela. Ou então, era, mas em um corpo diferente. Sentiu como se tivesse acordado em um novo corpo, com uma nova vida e novas lembranças. Lembrava-se de ter vivido o dia anterior, de ter estudado, comido pizza e usado o pijama branco. Mas sentia como se nada disso tivesse realmente acontecido, como um déja vu às avessas.Talvez ela fosse outra pessoa com outra vida qualquer antes de se deitar e, ao dormir, tivesse trocado de vida com alguém. Talvez isso acontecesse todos os dias. Talvez sua vida toda tivesse sido um sonho e, ao acordar, tivesse esquecido do que era real. Ou talvez estivesse sonhando. É, melhor que fosse um sonho ou apenas uma sensação meio maluca. Resolveu, então, voltar para a cama.

Monotonia 2

Ás sete saiu de casa. Trancou a porta, o portão, café com torradas na padaria da esquina. O ônibus estava lotado. O trânsito, um inferno. Chegou no trabalho. Ás oito assinou papéis. Ás dez, foi para a sala de reuniões. O cliente contou uma piada. Uma da tarde almoçou. Três da tarde, mais papéis. Ás cinco, efetivou a estagiária de comunicação. Sete horas, foi para casa. Trancou o portão, a porta, serviu um whisky. Jornal das oito. Whisky. Novela da globo. Whisky. Abriu um livro. Whisky. Ás onze, foi para a cozinha. COmeu qualquer coisa e foi para a cama. Acendeu o abajur, abriu a gaveta e tirou algo do criado-mudo. Meia noite, deu dois tiros. Um no abajur, outro no peito.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Clarisse

O vento gelado cortava-lhe a pele enquanto corria. Sentia cada pingo de suor que evaporava de sua pele, mas não queria parar. Ao contrário, não era capaz de correr rápido o bastante. Todo o seu corpo já lhe doía, mas Clarisse não iria descansar. Sentia seu pé bater com força no chão a cada passo, e seus joelhos fraquejaram para subir a escadaria do edifício; era seu prédio de trabalho. Clarisse não sentia vontade de se trancar em um escritório. Aquele dia não era para isso, queria se sentir um pouco livre. Já não via mais sentido em trabalhar tanto por uns trocos e sair beber no mesmo bar em frente de casa todos os finais de semana. O mundo todo agora se tornara um porre. Mostrou seu crachá ao passar pela porta da frente e cruzar o hall, ignorando os olhares curiosos para seu agasalho cinza encharcado de suor. Entrou no elevador junto com um Boy e muitos papeis. Olhava para cima: seu reflexo estava distorcido no espelho. Alguns fios desprendidos do seu cabelo_castanho e liso_ lhe cobriam a face, colados na pele úmida. Clarisse deixou o elevador e subiu 3 lances de escada, até o terraço. Era um dos prédios mais altos da cidade. Sempre gostara daquele terraço; era onde passava os poucos momentos em que fugia do escritório. Poucas pessoas subiam la, particularmente em uma manhã de segunda feira repleta de neblina e temperatura abaixo dos 8°C.
O lugar mais solitário da cidade. Deprimente... Estar em uma cidade com milhões de pessoas e não querer ver ninguém. Clarisse já não sabe o que sentir. Só pode lembrar de tudo o que já viveu. Do dia em que viu seu pai ir embora no meio da noite, das vezes que viu sua mãe bêbada, quando viu sua mãe enriquecer em um casamento relâmpago e quando saiu de casa para morar com uma amiga. Saudades da Lucy...das tardes perfeitas, das noites perfeitas, dos jantares e idas à praia. A única pessoa que a entendia, agora morava em outro país, com um musico rico que a levara embora. Clarisse estava sozinha há meses, e não agüentava mais isso. Sua cabeça está girando. Mas não, esta manha ela não bebeu nada. Se apóia à grade de proteção e se distrai com 2 pombas que passam meio perdidas. Por que as pessoas vivem? O que será que tem la embaixo? Sobe na grade. Seu corpo é pesado, a grade estala. Abre os braços e o vento faz doer sua pele. Seus joelhos fraquejam. Clarisse sente seu corpo fraco. Se solta.Cai.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Monotonia

Acorda todas as manhãs com o mesmo toque irritante do mesmo despertador barato toma o mesmo café escova os dentes com a mesma pasta espera pelo mesmo ônibus no mesmo ponto e com a mesma companhia olha pela mesma janela passa pelas mesmas ruas pelos mesmos postes pelas mesmas praças com as mesmas pessoas andando trabalhando vivendo cada uma o seu ofício. Trabalha de novo de novo de novo de novo sem motivo. O almoço não tem sal. O cabelo não tem cor. O amor não tem gosto. A noite não tem graça. Antes de dormir descobre que o dia foi igual a todos os outros, que a vida é sempre igual a todas as outras. Muda apenas a forma como o dia toca na nossa pele.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Um enredo comum

Todas as tardes, ele sentava na mesma cafeteria, com seu Neruda e capuccino até que ela passasse. Julie saia do serviço às 6 e passava pelo outro lado da rua, a caminho de casa. Marcelo não se cansava de esperar para vê-la passar ao longe.
Um dia quis ver a moça de perto. Simplesmente chamou Julie, e esperou que ela se virasse para começar a tremer. Pensou, em um segundo, em todas as declarações já decoradas de tanto ensaiar em frente ao espelho, pensou em dizer-se apaixonado, pensou em roubar-lhe um beijo.
Perguntou as horas, apenas. Sentiu ódio quando ela virou-se para ir novamente embora. No dia seguinte, pediu seu nome. No dia seguinte, pediu para que se sentasse. Pediu então uma bebida. Pediu depois um beijo. Pediu para que ela ficasse. E ficaram.
Saíram depois. Juntos, infinitas vezes. Passearam, beberam, riram, brincaram, transaram e gozaram. Agora já não ensaiavam mais conversas, agora podiam gritar se quisessem. Gritando, brigaram.
Julie quis ir embora. Marcelo pediu um beijo. Pediu para que ela ficasse. Não bastava apenas olhar para ela. Precisava que ela fosse sua, apenas sua. Ela não ouviu. Teve ímpetos de ficar, mas decidiu partir.
Se a moça não queria ser dele por completo, bastava o corpo. Quando ela partiu, ele trouxe de volta. Trouxe apenas o corpo. O resto, foi para qualquer lugar. Marcelo, enfim, tornou-se dono de Júlia.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Filme antigo

Parecia uma cena de filme. Duas jovens, correndo no parque e rindo de si mesmas. Faltavam apenas os trajes de época, a maquiagem, alguns hectares a mais de bosque e alguma lenda sobre monstros. Faltavam também as câmeras. Sentaram-se perto do lago e deitaram para descobrir que o sol olhava para elas. Em meio à fumaça do segundo ou terceiro cigarro, riam de si mesmas. Estavam juntas desde sempre e tinham as mesmas histórias para contar. Por isso, gargalhavam juntas sem precisar ter motivo. O bosque era repleto de árvores, e cada árvore tinha uma história pra contar. Uma delas parecia-se com uma senhora de uns 45 anos, aparentando ser mais velha, de saia longa e blusa marrom. Perto dela, um arbusto tinha jeito de guri levado com estilingue na mão e gomas nos bolsos. Uma outra, mais ao longe, tinha jeito de querer espantar todos que se aproximassem. Era rabugenta, como se tivesse sofrido muito na vida e não quisesse conhecer mais nada neste mundo. Não havia em todo o mundo alguém que se sentisse tão bem quanto as duas garotas no parque. Quanto mais se aproximavam de se tornarem mulheres, mais sentiam que deixavam de viver. Mas, naquele momento, o tempo estava congelado. As nuvens não corriam e o sol não cansaria de brilhar. Ambas sabiam que não importava quanto tivessem sofrido na vida, conheciam a sensação de estar no paraíso.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Madrugada

Já era muito tarde, ou talvez fosse cedo... dependia apenas de no pulso de quem estivessem os ponteiros. De todo modo, era a hora em que eu estava chegando em casa. A hora em que saíra, contudo, eu já não fazia ideia. Lembrava apenas de alguns flashes da noite anterior. Algo como alguma bebida, alguma fumaça, alguns gritos sobre política, um alvoroço no portão de casa. Sabia que algo interessante havia acontecido. Eu poderia ter sido presa, conhecido minha alma gêmea ou descoberto uma nova constelação. Mas nada disso importava, afinal, eu sequer lembrava de ter saído de casa. Entrei sozinha, sem sono. A casa fechada tinha cheiro poeira e minha cama estava desfeita. Meus pés doiam e eu estava muito cansada. Tirei os sapatos, deitei na cama e deitei de jeans e luz acesa. Adormeci.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Enfeite de prateleira

Anna Clara estava vestida de boneca, sentada na prateleira do seu quarto. A vidraça aberta mostrava o céu, metade de uma árvore, o topo verde do muro, as nuvens de sempre, entrecortadas por cabos de energia onde pombas urbanas se encontravam no fim da tarde. Com sua roupa de boneca e seu rosto de plástico, Anna Clara fazia parte da decoração do quarto, camuflada entre ursos de pelúcia e palhaços de porcelana. Por mais que quisesse, não poderia se mover. A decoração do quarto não se move. Apenas fica parada, vendo de canto de olho as nuvens que mudam de forma, dizendo "Muito Prazer!" para as pombas e pensando que a dona do quarto poderia entrar e fazer algo de novo. Como se ela fosse entrar e mudar todas as coisas de lugar, jogar fora o que já não servia, rabiscar as paredes de qualquer cor. Mas a dona do quarto, naquela tarde, fazia parte da decoração.