terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Dia de Jogo

Ela acordou cedo, como todas as manhãs. A tempo de preparar um bom café e abrir as cortinas. Serviu o prato do marido, ajudou as crianças enquanto comiam e se trocavam para a escola e desejou um bom dia a todos. Arrumou as camas, espanou a poeira dos móveis e preparou um almoço de todo dia. Feijão quente e bem temperado, carne suculenta. Cozinha limpa, roupas dobradas e brinquedos guardados. Em sua profissão diária e mal paga, se permitiu encerrar o expediente cedo naquele dia. As crianças brincavam no quarto, o marido não chegara ainda. Era quase hora do jantar, que tinha que estar à mesa todas as noites. Abriu uma cerveja do marido, pensando no tédio desses dias. Pensou em outras formas de vida, como sempre pensava. Entre a segunda e a terceira cerveja teve um vislumbre de uma vida em que não precisaria fazer todas as refeições. Mandou o filho mais velho à padaria trazer uns pães e queijo. Não queria cozinhar. Abriu mais uma cerveja, pensando se daria tempo de gelar mais latas antes que seu homem chegasse; ele sempre tomava uma após o trabalho. Não se importou. Imaginou nunca mais ter que se empenhar para fazê-lo feliz. Deixar as crianças com sua mãe um tempo, era uma boa avó, poderia estragá-las um pouco, sorriu. Pensou em poder ter amigas, beber sempre que quisesse, viajar e nunca ter que se depilar ou usar maquiagem dentro de casa. Imaginou como seria a vida de outras mulheres, que não tivessem se casado com o namorado do colegial, que não vivessem presas em um comercial de margarina mantendo sua família unida e feliz. O queijo já derretia na mesa quando o marido chegou pedindo o jantar. Tivera um dia estressante. Pensando bem, nem queria jantar, apenas abrir uma cerveja e esperar o jogo com uns petiscos. Olhou para a cozinha; não tinha jantar, apenas pão. Ela tomara suas cervejas, boa parte delas. Sequer fora recebido com o costumeiro beijo sem língua. Gritou com a mulher, perguntou o que andara fazendo. Ela gritou, disse que estava cansada, que queria liberdade. Estava cansada de cozinhar, de limpar, de cuidar das crianças, de limpar as crianças. Parou por aí, o marido acertou um tapa em sua face. "Chega, o que pensa que está dizendo? As crianças estão chorando, a casa não está limpa, você sequer trabalha, vive sustentada por mim e nem para deixar o jantar pronto e casa em ordem quando chego? Que se foda sua vadia!". Apanhou, como nunca antes. Bom, como nunca nos últimos meses. Chorou, quis gritar que iria embora. Ele perguntou para onde, se não tinha dinheiro. Ela mal se lembrava de seus devaneios. Chorou, pediu desculpas. Ele foi para a sala e ligou a televisão, o jogo ainda não havia começado. As crianças estavam chorando. Ela serviu sorvete para as crianças, preparou um wisky e alguns aperitivos para o marido, um sanduiche para si mesma e foi dormir. Havia bebido e sua cabeça doía.

Cama de meio-fio

Quando ouviu o homem de uniforme gritar: "Saia e leve suas tralhas daqui!" sentiu vontade de rir. Sequer eram suas. Ou, bem, encontrado não era roubado, pensou. Se roubou tomou posse. Tanto fazia, sem casa para morar não teria para onde levar suas tralhas. Dormiria nelas de cabelos imundos e saias que mal cobriam suas pernas. Ou suas nádegas. Também não faria diferença; o que já valera alguns trocados hoje sequer merecia ser olhado. Riu mesmo alto, na frente do homem de uniforme e das pessoas que passavam, que nem a reconheceram como mulher. Tropeçou e caiu no meio-fio. Sujou de barro suas roupas mal lavadas.

Sobre o Medo de Envelhecer

O bicho papão nunca entrou em seu armário.
 Ele entrava pela porta da frente. Sentava na sala, na cozinha. Anna Clara sentava em seu colo. Quando ele mudava de forma, quando perdia a forma de monstro se tornava um senhor simpático, ente amado da família e da comunidade.
 Anna nunca teve medo de armários.
Tinha medo de mãos, mãos que fossem mais fortes que as dela. Mãos que podiam mover suas pequenas mãos _ e outras partes de seu corpo _ como bem entendessem.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Lentes

        Toni, enfim, conseguira o emprego de seus sonhos. Ou seria, caso recebesse salário. De todo modo, descobrira algo que o fazia feliz. Era um homem com um dom. Tivera sempre uma visão diferente das outras pessoas. Sabia ver a beleza de tudo. Fossem ruas quebradas, madeira podre, lixo humano, paisagens tediosas ou pessoas.
        Ah, principalmente se fossem mulheres. De todos os tipos, cores e tamanhos. Não importava se gorda, feia, suja ou doente. Sempre as achava maravilhosas. Sempre havia um ângulo perfeito. Assim, sabia ter nascido para ser fotógrafo.
        Mesmo antes de ter uma câmera, guardava os olhares. Tinha uma boa memória, sabia desenhar. Mas agora arranjara uma câmera fotográfica. Esta o fazia incrivelmente feliz. Onde visse coisas bonitas, registrava. Escondido por trás das cortinas da janela,, em seu apartamento de um quarto andar suburbano, Toni assistia a rotina de suas vizinhas, das moças que passavam na rua. De todas as mulheres. Elas passaram a encantar seus dias como nunca antes. Passeava pelas calçadas na "hora mágica" buscando imagens para registrar.
        Hoje sentou na praça sozinho. Olhava as gurias correndo, comendo e brincando. (Newto). Fotografava todas as cenas. Nada mais importava. Bastava para ele poder reviver aquele momento por quantas vezes bem entendesse. Algumas pessoas não gostaram. Se ofenderam. Vieram os homens. Maridos, pais, heróis. Quebraram a câmera. Quebraram Toni. Ele sangrou na praça, sozinho. Foi fotografado para o jornal da cidade.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Velha de verde.

      Era uma velhinha de verde. Essa era a imagem que descrevia Cecília enquanto passava pela calçada.  Corpo de quem ja tivera tantos filhos quanto rugas nos olhos, mãos de quem ja lavara toneladas de lençóis e pele de muitos dias em frente a um forno.
       Mas isso de pouco valhia. Não era possível imaginar sua história por marcas em sua pele ou uma encharpe verde. Apenas se poderia imaginar que Dona Cecília nascera ali pelo sul, em meio a um conflito de terras. Que ela engravidara sem aliança,  provavelmente num galpão solitário.  Que seu filho fugira para se casar com outro homem, sem sequer perguntar se teria sua bênção.  Que sua outra filha lhe dera sapatos e um  como presente de natal.
       De nada importava. Poderiam ser criadas infinitas histórias, adivinhados alguns passos.. O que realmente importava era aquela senhora de verde voltando para casa sozinha, onde teria que comer qualquer coisa e ir dormir sem ninguém para cuidar.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Aquário

        Que tédio! Lure estava cansado de viver naquele lugar apertado. Era um peixe. Vermelho, nascido em uma floricultura. Muito apropriado, provavelmente. Vivia em um aquário barato com bolhas e plantas falsas. As pessoas passavam assistindo sua rotina, como se estivessem interessadas. Nadava de um lado para outro, vivendo de bolinhas de ração insípidas e cagava em sua sala de estar.
        Não tinha certeza de onde deveria estar. Sonhava às vezes com outra vida, livre como os outros seres. Como as pessoas que moravam na casa. Entravam e saíam de cena, carregavam pertences caminhavam para onde bem entendessem, mudavam os móveis de lugar e comiam comida de verdade. Como invejava essas outras espécies. Assistia da grande tela de seu aquário.
       Ouvia as conversas dos homens. Certa vez, um deles parecia estar chorando. Era jovem, um garoto. Desesperado por não saber o que queria fazer com sua vida. Outro homem lhe disse que poderia fazer o que quisesse, que era livre. Oras, claro que era. Tinha pernas, poderia andar para qualquer lugar, viver qualquer tipo de vida, sem ter que assistir o mundo por uma tela de vidro.
        Lure decidiu ser livre também. Se não aguentava mais viver daquela maneira, poderia escolher fugir disso. Ao menos tinha uma escolha. Pensou que não saberia andar, mas ao menos poderia sair daquela água. Qualquer lugar poderia ser menos entediante. Assim, num impulso louco ou heróico, nadou para cima com todas as forças e conseguiu saltar para fora do aquário.
        Sentiu um baque fortíssimo ao cair no chão. Era seco, empoeirado. Começou a se debater, não podia ir a lugar algum. Não podia respirar. Pensou se estaria menos livre do que antes, entrou em pânico e, por fim, aceitou a morte. Foda-se, pelo menos saio daquele maldito aquário. Mesmo não tendo para onde ir. Pensou que morreria como um inválido, consequência da única escolha que tomara em sua vida. Estava feliz. Sem respirar, quase sem consciência, mas feliz.
       O mesmo homem passou pela sala e viu Lure no chão, deitado. Simplesmente se abaixou, o agarrou pela cauda e jogou novamente para dentro do aquário.

Farinha

         A cozinha estava coberta de farinha. Cascas de ovos, respingos de massa e o cheiro de bolo assando. Sofia estava há horas cozinhando. Não fizera outra coisa hoje além de uma dúzia de massas de bolo e umas travessas de cobertura. Para quem comer, não fazia ideia. Apenas estava cansada de não fazer nada. Ao menos, nada que lhe interessasse. Bem, bolo era o que fazia de melhor.
        As crianças iriam da escola para a casa de um coleguinha, e Sofia teria a noite para ela. Deveria estar descansando, terminando seu livro, passeando com o cachorro ou jantando com o Marcos, professor de karatê dos meninos. Era bonito, solteiro.
        Deus, como faz falta um marido. Abandonara seu livro há semanas, a academia há meses e sua guitarra há anos. Estavam todos acumulando poeira, esperando os recibos das contas do mês e que as crianças estivessem saudáveis, alimentadas e com boas notas. Dois garotos, maravilhosos, mas que não paravam de se mexer por sequer um minuto.
        E hoje a noite era de folga. Para fazer qualquer coisa, menos abrir a segunda garrafa de vinho branco enquanto queimava o que devia ser o centésimo bolo de chocolate. Detestava bolo. Só o que queria era chamar as crianças de volta. Assim não ficaria sozinha naquele apartamento barulhento. Nem lembrava de ter colocado aquela playlist chata de pop italiano, que ficava abafada com o som da batedeira sempre ligada.
         Enfim, acabou a farinha. Os ovos, o açúcar. Pelo jeito do bairro inteiro. Melhor sentar para esperar as crianças. Voltam daqui a pouco, ou daqui a poucas horas. Amanhã é dia de colégio e Sofia tinha que trabalhar.