sábado, 27 de novembro de 2010

Verde

Olhei, olhei, olhei até que doesse. Cansei de ver a mesma cor. Enxergar os mesmos olhos que já doíam de tanto olhar para não sei quê. Olhos são sempre úmidos. Por mais que eu passasse horas em frente àquele espelho, a cor não mudava. Mas a idade sim. O cansaço já tinha jeito e forma, os anos mal dormidos deixavam suas rugas, apesar das feições jovens. A gente tem medo de envelhecer. Acho que não é pela proximidade da morte.. mesmo os recém nascidos morrem. Acontece que o mundo machuca os olhos, e não queremos mostrar que sentimos. Toda vez que vejo o espelho lembro da vida, então fico sem entender bem os motivos de tudo isso..meio indecisa entre valer a pena sofrer ou sentir prazer, e meio com vontade de rir de toda essa besteira, ou então acabar com ela. Não, sério.. eu nunca sei o que fazer. Mas esse assunto é chato demais para uma noite quente, deixa a morte para qualquer hora dessas... alguém me traga mais uma cerveja?

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Reforma!

Laly era uma guria nova ,até que bonita, un tanto quanto inteligente... tinha apenas um grande problema: faltava-lhe paciência com o mundo. Ela via as coisas erradas e não aguentava vê-las daquele jeito. Notara ainda criança que a humanidade era cheia de problemas, mentira e defeitos, e nem de longe suportava isso. Assim, pessoas a irritavam. Não sempre, havia horas em que se divertia, até ria, mas o que mais fazia mesmo era matraquear. Reclamava e reclamava sempre do mundo em que vivia. Nada para ela estava bom, as pessoas nunca faziam as coisas direito e ninguem conseguia entender o que ela sentia. Não que achasse que isso fosse resolver alguma coisa, mas, oras, falar sempre foi mais cômodo do que fazer. O caso aqui é que, ao invés de ajudar em qualquer coisa, Laly se tornou apenas mais um daqueles problemas que tanto o irritavam... E passou a ser mais irritante do que achava que o mundo era. Tornou-se insuportável até mesmo para si própria. Enfim, quando já não sabia mais o que falar, de tanto que já havia dito, Laly simplesmente perdeu a voz. Muda como ficou, então, descobriu que podia fazer algo mais interessante do que falar, falar e falar: aprendeu então a se mexer!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Muito prazer!

-Com licença, senhor,
muito prazer,
a seu dispor sou o Tolo!
Assim se apresentava o distinto senhor
que tropeçava pelas ruas
quase que vestido completamente de farrapos
meio que tropeçando em seu chapéu
que por respeito tirava para quaisquer madames que avistasse
Baforando uma cigarro fétido e apresentando-se ao povo das ruas
Público que assistia desvairada apresentação
mendigos saltimbancos
carros poluentes
vendedores ambulantes
A beleza da cidade quando vista por baixo!
É que bairros pobres são feios mesmo
Tolo não sabia disso
sabia apenas que a vida era maravilhosa
ou que seria maravilhoso ter uma vida
Não que não tivesse uma história
Tolo apenas não se lembrava da sua
Nessas costumeiras brincadeiras do destino
perdera seu passado
esquecera por onde andava
e junto perdeu-se seu futuro!
Assim, de Tolo
todos chamaram o homenzinho sem futuro
sem vida e sem história
dançando com saltimbancos miseráveis
que cuspiam fumaça fétida
que comiam carniça podre
e tropeçavam pelos buracos
dessas ruas de bairro pobre
de uma cidade qualquer...
Tolo não se importava
não amava a vida que não tinha
mas a vida é maravilhosa
Apenas, então, repetia para quem ouvisse:
-Com licença, senhor,
muito prazer,
a seu dispor sou o Tolo!


PS: Drama dedicado a Michelle, a primeira pessoa que me falou sobre o Tolo!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Um conto trágico

Hoje, meus senhores, vou contar uma história terrível. Não terrível como um conto de horror ou algo assim. É pior porque se trata de, acreditem ou não, uma história real.
Era uma vez homem que podia fazer tudo. Qualquer ideia que tivesse, bastava querer, se tornava realidade.Juro, meus senhores. Não se tratava de um mago, um feiticeiro ou algo assim. Ele simplesmente nascera com poderes sobre-humanos, e ninguém poderia explicar. Quando criança era maravilhoso. Ele sequer começava a chorar, e chovia leite sobre o berço. Simples assim, meus senhores.
Conforme cresceu, teve todos os brinquedos, conheceu todos os lugares e fez todas as coisas que deixariam qualquer criança louca de inveja. Aos 3 anos teve um pônei, aos 4, seu pônei criou asas. Com 8 anos assistiu a um show de strip tease da branca de neve(acreditem, meus senhores, muitos garotinhos sonharam com isso um dia) e com 11 pilotou seu primeiro avião.
O fato, meus senhores, é que eu poderia encher centenas de linhas com as façanhas do nosso herói, mas não vou fazê-lo. Minha história não se trata disso. O que estou contando é de como esse jovem enlouqueceu. Imaginem, meus senhores. Até seus pais enlouqueceram de ver o garoto conseguir tantas coisas, nosso personagem até que aguentou bastante tempo. Ao menos os pais dele não deixaram que o mundo conhecesse seus poderes. Viviam se mudando para evitar chamar tanta atenção, pois não queriam nem pensar nas consequências dessa história ir parar na televisão. Dessa forma, evitaram os holofotes sobre a criança.
Nossa criança, porém, cresceu. E como todo jovem, um dia notou que era diferente dos outros. Talvez mais diferente que o convencional, mas ainda assim, apenas diferente. Notou também que nem todos eram afortunados como ele, e que ele poderia mudar isso. Bastava querer. E assim foi fazendo, dava para as pessoas tudo o que achava que elas queriam. Comida, beleza, carros, dinheiro, mulheres e qualquer outra coisa que desejassem. Dessa vez, tornou-se famoso.
O mundo fazia fila para conhecer o garoto que realizava os sonhos dos homens, havia quem o idolatrasse, quem achasse que ele fosse um deus, um demônio ou qualquer outra coisa que pudessem pensar. Os homens tinham medo dele, mas mesmo com medo, não perdiam tempo em fazer cada vez mais pedidos.
O problema, meus senhores, é que o que os homens sonham raramente é o melhor para eles. Os desejos dos homens são insaciáveis, e homem algum tem tudo o que quer. Ao invés de fila para encontrar o menino, faziam guerras. Todos queriam ser mais fortes que os outros, queriam ser felizes e queriam ter poder. Na verdade, ninguém mais sabia o que queria.
Vocês sabem, senhores, como nós somos. Começamos humildes, querendo apenas o que basta para sobreviver. Depois queremos felicidade, riquezas, amores épicos... Terminamos querendo ser donos do mundo e, quando somos, desejamos ser pobres e livres novamente. E nosso garoto percebeu isso. Percebeu também que seu maior desejo não poderia ser realizado. Ele queria que a humanidade fosse feliz. Mas como fazer isso se os homens nem sabem o que querem?
E dessa forma trágica termina nossa história. Querendo ajudar os homens, nosso herói conseguiu criar um caos completo. Ao se dar conta disso, ficou completamente confuso. Oras, se ele sempre tinha tudo o que queria, pq não poderia ter felicidade? Assim, em um devaneio extremo, deu um fim súbito para sua existência: desejou nunca ter nascido.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Almoço

– Será que o prefeito não mandará consertar o poste¿ Está ficando perigoso chegar em casa à noite.
Era essa a conversa que se ouvia na mesa de terça-feira, enquanto a família almoçava.
– Vou ligar para a prefeitura hoje à tarde, querida. Não se preocupe.
– Estou grávida!
A frase da filha mais velha conseguiu quebrar todo o tédio de mastigar o arroz com feijão.
– Maria, você ... tem certeza¿ -Balbuciou a mãe assim que conseguiu engolir a comida que tinha na boca.
– Tenho sim – respondeu a menina sorrindo, enquanto servia-se de um bife. – Acho que o pai é um garoto lá do colégio.
–Tomara que seja menina! – Respondeu a irmã caçula – Daí ela poderá brincar comigo de boneca.
–Não fique assim, papai – Tornou Maria, ao notar que seu pai ainda a olhava perplexo – Vou arrumar um emprego e continuar morando na nossa casa. Vamos construir um quartinho a mais nos fundos, ou então colocar um berço no de visitas. Se for menino terá seu nome.
A família terminou de almoçar calada. A mãe cuidou da louça, Maria e a irmã foram assistir a um filme e o pai ligou para a prefeitura, para reclamar que o poste da frente estava queimado, antes de ir para o trabalho.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Desejo

Ambos os corpos eram jovens. Jovens e belos. Ela linda. Morena, olhos de gata siamesa, corpo de estrela do cinema francês, encantadora. Ele, um velho. Sentia-se como se tivesse vivido 100 anos e sofrido toda uma vida. Seu corpo era moço, mas sua alma, idosa. Repleta de arrependimentos e de histórias para contar.
Se encontraram qualquer dia desses meio que por acaso. Quem os visse, acharia um casal digno de fotografia. Suas mentes, porém, não se suportavam. Ela ainda era inquieta, não aguentava esperar o rítmo da vida. Enquanto isso, ele já havia vivido tudo o que existe. Seus corpos, porém, se entendiam. Ao primeiro encontro. Para eles, bastou o desejo. Pronto.

domingo, 29 de agosto de 2010

Luthier

O senhor Olavo trabalha em uma lojinha pequena, na esquina da Carlos de Carvalho com a Santos Dummont, consertando coisas. Objetos que clientes traziam e que, na maior parte das vezes, mesmo não valendo um tostão, faziam questão de que fossem consertadas: relógios antigos, molduras de telas, tapeçarias castigadas por fungos ou traças. Trabalhava como um luthier de bugigangas, mas que apenas reparava objetos criados por outras pessoas. Todas as noites chegava em casa e, sequer cansado de trabalhar, passava horas sozinho pensando no que mais poderia fazer de sua vida. Entre um trago e outro, escrevia o que viesse em sua cabeça e adormecia ébrio a fim de poder sonhar com coisas que já não se lembrava. Desde sempre, amava escrever. Mas não era escritor. Faltava-lhe talento. Não sabia criar. Uma única vez havia escrito um grande poema. Três ou quatro paginas da maravilhosa história de um jovem trovador medieval apaixonado por uma dama da alta corte, aliás, casada. O poema, contudo, não estava acabado. Mas toda a inspiração de Olavo sim. Ele repetia, então, o poema. Todas as noites, para ver se encontrava o final da história. Já havia datilografado centenas de cópias, as quais jaziam pregadas pelas paredes do pequeno apartamento de 3 cômodos e 1 janela. Quando criança sonhara em ser famoso, mas crescera. Agora seu poema está misturado à bugiganga que conserta.

sábado, 28 de agosto de 2010

Espelho

Anna Clara olhou-se no espelho e não se reconheceu. Não é que estivesse diferente, ou doente, ou mais velha. Simplesmente não parecia ela. Ou então, era, mas em um corpo diferente. Sentiu como se tivesse acordado em um novo corpo, com uma nova vida e novas lembranças. Lembrava-se de ter vivido o dia anterior, de ter estudado, comido pizza e usado o pijama branco. Mas sentia como se nada disso tivesse realmente acontecido, como um déja vu às avessas.Talvez ela fosse outra pessoa com outra vida qualquer antes de se deitar e, ao dormir, tivesse trocado de vida com alguém. Talvez isso acontecesse todos os dias. Talvez sua vida toda tivesse sido um sonho e, ao acordar, tivesse esquecido do que era real. Ou talvez estivesse sonhando. É, melhor que fosse um sonho ou apenas uma sensação meio maluca. Resolveu, então, voltar para a cama.

Monotonia 2

Ás sete saiu de casa. Trancou a porta, o portão, café com torradas na padaria da esquina. O ônibus estava lotado. O trânsito, um inferno. Chegou no trabalho. Ás oito assinou papéis. Ás dez, foi para a sala de reuniões. O cliente contou uma piada. Uma da tarde almoçou. Três da tarde, mais papéis. Ás cinco, efetivou a estagiária de comunicação. Sete horas, foi para casa. Trancou o portão, a porta, serviu um whisky. Jornal das oito. Whisky. Novela da globo. Whisky. Abriu um livro. Whisky. Ás onze, foi para a cozinha. COmeu qualquer coisa e foi para a cama. Acendeu o abajur, abriu a gaveta e tirou algo do criado-mudo. Meia noite, deu dois tiros. Um no abajur, outro no peito.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Clarisse

O vento gelado cortava-lhe a pele enquanto corria. Sentia cada pingo de suor que evaporava de sua pele, mas não queria parar. Ao contrário, não era capaz de correr rápido o bastante. Todo o seu corpo já lhe doía, mas Clarisse não iria descansar. Sentia seu pé bater com força no chão a cada passo, e seus joelhos fraquejaram para subir a escadaria do edifício; era seu prédio de trabalho. Clarisse não sentia vontade de se trancar em um escritório. Aquele dia não era para isso, queria se sentir um pouco livre. Já não via mais sentido em trabalhar tanto por uns trocos e sair beber no mesmo bar em frente de casa todos os finais de semana. O mundo todo agora se tornara um porre. Mostrou seu crachá ao passar pela porta da frente e cruzar o hall, ignorando os olhares curiosos para seu agasalho cinza encharcado de suor. Entrou no elevador junto com um Boy e muitos papeis. Olhava para cima: seu reflexo estava distorcido no espelho. Alguns fios desprendidos do seu cabelo_castanho e liso_ lhe cobriam a face, colados na pele úmida. Clarisse deixou o elevador e subiu 3 lances de escada, até o terraço. Era um dos prédios mais altos da cidade. Sempre gostara daquele terraço; era onde passava os poucos momentos em que fugia do escritório. Poucas pessoas subiam la, particularmente em uma manhã de segunda feira repleta de neblina e temperatura abaixo dos 8°C.
O lugar mais solitário da cidade. Deprimente... Estar em uma cidade com milhões de pessoas e não querer ver ninguém. Clarisse já não sabe o que sentir. Só pode lembrar de tudo o que já viveu. Do dia em que viu seu pai ir embora no meio da noite, das vezes que viu sua mãe bêbada, quando viu sua mãe enriquecer em um casamento relâmpago e quando saiu de casa para morar com uma amiga. Saudades da Lucy...das tardes perfeitas, das noites perfeitas, dos jantares e idas à praia. A única pessoa que a entendia, agora morava em outro país, com um musico rico que a levara embora. Clarisse estava sozinha há meses, e não agüentava mais isso. Sua cabeça está girando. Mas não, esta manha ela não bebeu nada. Se apóia à grade de proteção e se distrai com 2 pombas que passam meio perdidas. Por que as pessoas vivem? O que será que tem la embaixo? Sobe na grade. Seu corpo é pesado, a grade estala. Abre os braços e o vento faz doer sua pele. Seus joelhos fraquejam. Clarisse sente seu corpo fraco. Se solta.Cai.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Monotonia

Acorda todas as manhãs com o mesmo toque irritante do mesmo despertador barato toma o mesmo café escova os dentes com a mesma pasta espera pelo mesmo ônibus no mesmo ponto e com a mesma companhia olha pela mesma janela passa pelas mesmas ruas pelos mesmos postes pelas mesmas praças com as mesmas pessoas andando trabalhando vivendo cada uma o seu ofício. Trabalha de novo de novo de novo de novo sem motivo. O almoço não tem sal. O cabelo não tem cor. O amor não tem gosto. A noite não tem graça. Antes de dormir descobre que o dia foi igual a todos os outros, que a vida é sempre igual a todas as outras. Muda apenas a forma como o dia toca na nossa pele.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Um enredo comum

Todas as tardes, ele sentava na mesma cafeteria, com seu Neruda e capuccino até que ela passasse. Julie saia do serviço às 6 e passava pelo outro lado da rua, a caminho de casa. Marcelo não se cansava de esperar para vê-la passar ao longe.
Um dia quis ver a moça de perto. Simplesmente chamou Julie, e esperou que ela se virasse para começar a tremer. Pensou, em um segundo, em todas as declarações já decoradas de tanto ensaiar em frente ao espelho, pensou em dizer-se apaixonado, pensou em roubar-lhe um beijo.
Perguntou as horas, apenas. Sentiu ódio quando ela virou-se para ir novamente embora. No dia seguinte, pediu seu nome. No dia seguinte, pediu para que se sentasse. Pediu então uma bebida. Pediu depois um beijo. Pediu para que ela ficasse. E ficaram.
Saíram depois. Juntos, infinitas vezes. Passearam, beberam, riram, brincaram, transaram e gozaram. Agora já não ensaiavam mais conversas, agora podiam gritar se quisessem. Gritando, brigaram.
Julie quis ir embora. Marcelo pediu um beijo. Pediu para que ela ficasse. Não bastava apenas olhar para ela. Precisava que ela fosse sua, apenas sua. Ela não ouviu. Teve ímpetos de ficar, mas decidiu partir.
Se a moça não queria ser dele por completo, bastava o corpo. Quando ela partiu, ele trouxe de volta. Trouxe apenas o corpo. O resto, foi para qualquer lugar. Marcelo, enfim, tornou-se dono de Júlia.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Filme antigo

Parecia uma cena de filme. Duas jovens, correndo no parque e rindo de si mesmas. Faltavam apenas os trajes de época, a maquiagem, alguns hectares a mais de bosque e alguma lenda sobre monstros. Faltavam também as câmeras. Sentaram-se perto do lago e deitaram para descobrir que o sol olhava para elas. Em meio à fumaça do segundo ou terceiro cigarro, riam de si mesmas. Estavam juntas desde sempre e tinham as mesmas histórias para contar. Por isso, gargalhavam juntas sem precisar ter motivo. O bosque era repleto de árvores, e cada árvore tinha uma história pra contar. Uma delas parecia-se com uma senhora de uns 45 anos, aparentando ser mais velha, de saia longa e blusa marrom. Perto dela, um arbusto tinha jeito de guri levado com estilingue na mão e gomas nos bolsos. Uma outra, mais ao longe, tinha jeito de querer espantar todos que se aproximassem. Era rabugenta, como se tivesse sofrido muito na vida e não quisesse conhecer mais nada neste mundo. Não havia em todo o mundo alguém que se sentisse tão bem quanto as duas garotas no parque. Quanto mais se aproximavam de se tornarem mulheres, mais sentiam que deixavam de viver. Mas, naquele momento, o tempo estava congelado. As nuvens não corriam e o sol não cansaria de brilhar. Ambas sabiam que não importava quanto tivessem sofrido na vida, conheciam a sensação de estar no paraíso.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Madrugada

Já era muito tarde, ou talvez fosse cedo... dependia apenas de no pulso de quem estivessem os ponteiros. De todo modo, era a hora em que eu estava chegando em casa. A hora em que saíra, contudo, eu já não fazia ideia. Lembrava apenas de alguns flashes da noite anterior. Algo como alguma bebida, alguma fumaça, alguns gritos sobre política, um alvoroço no portão de casa. Sabia que algo interessante havia acontecido. Eu poderia ter sido presa, conhecido minha alma gêmea ou descoberto uma nova constelação. Mas nada disso importava, afinal, eu sequer lembrava de ter saído de casa. Entrei sozinha, sem sono. A casa fechada tinha cheiro poeira e minha cama estava desfeita. Meus pés doiam e eu estava muito cansada. Tirei os sapatos, deitei na cama e deitei de jeans e luz acesa. Adormeci.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Enfeite de prateleira

Anna Clara estava vestida de boneca, sentada na prateleira do seu quarto. A vidraça aberta mostrava o céu, metade de uma árvore, o topo verde do muro, as nuvens de sempre, entrecortadas por cabos de energia onde pombas urbanas se encontravam no fim da tarde. Com sua roupa de boneca e seu rosto de plástico, Anna Clara fazia parte da decoração do quarto, camuflada entre ursos de pelúcia e palhaços de porcelana. Por mais que quisesse, não poderia se mover. A decoração do quarto não se move. Apenas fica parada, vendo de canto de olho as nuvens que mudam de forma, dizendo "Muito Prazer!" para as pombas e pensando que a dona do quarto poderia entrar e fazer algo de novo. Como se ela fosse entrar e mudar todas as coisas de lugar, jogar fora o que já não servia, rabiscar as paredes de qualquer cor. Mas a dona do quarto, naquela tarde, fazia parte da decoração.