segunda-feira, 17 de abril de 2017

Velha de verde.

      Era uma velhinha de verde. Essa era a imagem que descrevia Cecília enquanto passava pela calçada.  Corpo de quem ja tivera tantos filhos quanto rugas nos olhos, mãos de quem ja lavara toneladas de lençóis e pele de muitos dias em frente a um forno.
       Mas isso de pouco valhia. Não era possível imaginar sua história por marcas em sua pele ou uma encharpe verde. Apenas se poderia imaginar que Dona Cecília nascera ali pelo sul, em meio a um conflito de terras. Que ela engravidara sem aliança,  provavelmente num galpão solitário.  Que seu filho fugira para se casar com outro homem, sem sequer perguntar se teria sua bênção.  Que sua outra filha lhe dera sapatos e um  como presente de natal.
       De nada importava. Poderiam ser criadas infinitas histórias, adivinhados alguns passos.. O que realmente importava era aquela senhora de verde voltando para casa sozinha, onde teria que comer qualquer coisa e ir dormir sem ninguém para cuidar.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Aquário

        Que tédio! Lure estava cansado de viver naquele lugar apertado. Era um peixe. Vermelho, nascido em uma floricultura. Muito apropriado, provavelmente. Vivia em um aquário barato com bolhas e plantas falsas. As pessoas passavam assistindo sua rotina, como se estivessem interessadas. Nadava de um lado para outro, vivendo de bolinhas de ração insípidas e cagava em sua sala de estar.
        Não tinha certeza de onde deveria estar. Sonhava às vezes com outra vida, livre como os outros seres. Como as pessoas que moravam na casa. Entravam e saíam de cena, carregavam pertences caminhavam para onde bem entendessem, mudavam os móveis de lugar e comiam comida de verdade. Como invejava essas outras espécies. Assistia da grande tela de seu aquário.
       Ouvia as conversas dos homens. Certa vez, um deles parecia estar chorando. Era jovem, um garoto. Desesperado por não saber o que queria fazer com sua vida. Outro homem lhe disse que poderia fazer o que quisesse, que era livre. Oras, claro que era. Tinha pernas, poderia andar para qualquer lugar, viver qualquer tipo de vida, sem ter que assistir o mundo por uma tela de vidro.
        Lure decidiu ser livre também. Se não aguentava mais viver daquela maneira, poderia escolher fugir disso. Ao menos tinha uma escolha. Pensou que não saberia andar, mas ao menos poderia sair daquela água. Qualquer lugar poderia ser menos entediante. Assim, num impulso louco ou heróico, nadou para cima com todas as forças e conseguiu saltar para fora do aquário.
        Sentiu um baque fortíssimo ao cair no chão. Era seco, empoeirado. Começou a se debater, não podia ir a lugar algum. Não podia respirar. Pensou se estaria menos livre do que antes, entrou em pânico e, por fim, aceitou a morte. Foda-se, pelo menos saio daquele maldito aquário. Mesmo não tendo para onde ir. Pensou que morreria como um inválido, consequência da única escolha que tomara em sua vida. Estava feliz. Sem respirar, quase sem consciência, mas feliz.
       O mesmo homem passou pela sala e viu Lure no chão, deitado. Simplesmente se abaixou, o agarrou pela cauda e jogou novamente para dentro do aquário.

Farinha

         A cozinha estava coberta de farinha. Cascas de ovos, respingos de massa e o cheiro de bolo assando. Sofia estava há horas cozinhando. Não fizera outra coisa hoje além de uma dúzia de massas de bolo e umas travessas de cobertura. Para quem comer, não fazia ideia. Apenas estava cansada de não fazer nada. Ao menos, nada que lhe interessasse. Bem, bolo era o que fazia de melhor.
        As crianças iriam da escola para a casa de um coleguinha, e Sofia teria a noite para ela. Deveria estar descansando, terminando seu livro, passeando com o cachorro ou jantando com o Marcos, professor de karatê dos meninos. Era bonito, solteiro.
        Deus, como faz falta um marido. Abandonara seu livro há semanas, a academia há meses e sua guitarra há anos. Estavam todos acumulando poeira, esperando os recibos das contas do mês e que as crianças estivessem saudáveis, alimentadas e com boas notas. Dois garotos, maravilhosos, mas que não paravam de se mexer por sequer um minuto.
        E hoje a noite era de folga. Para fazer qualquer coisa, menos abrir a segunda garrafa de vinho branco enquanto queimava o que devia ser o centésimo bolo de chocolate. Detestava bolo. Só o que queria era chamar as crianças de volta. Assim não ficaria sozinha naquele apartamento barulhento. Nem lembrava de ter colocado aquela playlist chata de pop italiano, que ficava abafada com o som da batedeira sempre ligada.
         Enfim, acabou a farinha. Os ovos, o açúcar. Pelo jeito do bairro inteiro. Melhor sentar para esperar as crianças. Voltam daqui a pouco, ou daqui a poucas horas. Amanhã é dia de colégio e Sofia tinha que trabalhar.